segunda-feira, 16 de julho de 2007

Os boletins rabiscados do MRPP


Quando pedi ao Ministério Público acesso a queixas-crime de fraudes eleitorais, foi-me indicado um processo relativo às eleições autárquicas de Lisboa, mas de 1997, igualmente em Lisboa. Curiosamente, o seu desfecho foi o mesmo do referente a 2001 – o arquivamento.


Trata-se do inquérito 804/98.2.TDLSB.

O advogado Garcia Pereira, conhecido dirigente do PCTP/MRPP denunciou, a 12 de Janeiro de 1998, os «gravíssimos factos» de que teve conhecimento.
Na assembleia de apuramento geral dessas eleições, «foi constatada a existência de inúmeros votos declarados nulos por conterem a inscrição de uma cruz em mais de uma lista de candidatos.» Ora, «um exame mesmo a olho nu, mais atento, desses mesmos votos», muitos deles em listas do PCTP/MRPP, permitia «facilmente concluir que a segunda inscrição foi notoriamente feita com uma caneta de cor e traço claramente distinto da primeira.»
O advogado parecia gracejar na queixa ao lembrar que dificilmente os eleitores poderiam, na votação, sacar de duas canetas e inscrever duas cruzes no mesmo boletim. Era muito mais fácil anular o boletim com «um único traço sobre todo o boletim.» Por coincidência, a maioria dos votos anulados era do PCTP/MRPP.


Quem teria, então, anulado os votos?

Na reclamação apresentada, eram identificadas as secções de voto: 2 da Ameixoeira, a 28 e 32 de Santa Maria dos Olivais, a 12 e 14 de Campolide e a primeira do Lumiar.
Dada a gravidade dos indícios, o advogado pedia a sujeição dos boletins anulados a perícia laboratorial da Polícia Científica da Polícia Judiciária.
Os dirigentes do PCTP tinham as maiores dúvidas sobre «as precaríssimas condições» de segurança das instalações da Câmara Municipal. Nessa altura, o apuramento era feito nas instalações situadas na Avenida de 24 de Julho, 171-D.

«Trabalharam, distribuídos por seis mesas enfiadas “à pressão” em dois minúsculos gabinetes» e «a exiguidade do espaço em que foram forçados a trabalhar».


O depósito dos volumes enviados pelas freguesias e contendo as actas das mesas de voto, os boletins de voto e a documentação eleitoral era «feito – não em local próprio, fechado e seguro – mas ao longo de vários corredores de passagem do edifício em que funcionou a Assembleia de Apuramento Geral». Corredores, aliás, «acessíveis directamente do exterior por, pelo menos, três entradas – duas das quais permanentemente abertas durante o dia; e, destas, uma guarnecida por um mero guarda-vento envidraçado». Tudo, «com a agravante (...) de, entre os ditos volumes, se encontrarem também aqueles que deveriam ter sido confiados à guarda do Juiz de Direito da Comarca, nos termos da lei.»

Aliás, muitos desses volumes não continham «apenas um maço de boletins de voto, mas dois, lado a lado», o que permitia «subtrair ou trocar boletins de voto com a maior das facilidades, sem o mais pequeno toque no fio em que foram atados ou no lacre que firma o fio do embrulho». Quando a assembleia de apuramento reunisse, já estaria «a anomalia consumada» e teria de trabalhar, sem saber, sobre elementos alterados.

A procuradora pediu os nomes dos membros das secções de voto do concelho de Lisboa. E os votos foram pedidos ao Governo Civil, antes mesmo de serem destruídos.

Os 96 presidentes das mesas das quatro freguesias mencionadas receberam notificações para testemunhar. As sessões ficaram agendadas até 13 de Julho de 1998 e foram se realizando ao longo do tempo. No final, todos foram unânimes: nada de anormal tinham visto ou presenciaram.
Curioso verificar que, na sua quase totalidade, os presidentes foram ouvidos sem que o relatório pericial estivesse pronto, pelo que não puderam ser confrontados com as suas conclusões... O relatório só chegou a 8 de Julho, ou seja, cinco dias antes do último membro das mesas ser ouvido.

De qualquer modo, de nada serviria. As conclusões da polícia pericial tinham 41 páginas. Com lupa estereoscópica, comparador video espectral com diferentes tipos de iluminação e comprimentos de onda, os técnicos tentaram comparar os tipos de tinta dos boletins de voto.

Aquilo que era notório a olho visto, não era conclusivo do ponto vista técnico.


Informa-se que este laboratório não dispõe de meios humanos, nem técnicos que permitam um estudo cientificamente fundado do vasto mercado de instrumentos de escrita existentes, pelo que é não é possível qualquer abordagem da complexa problemática que é a datação de tintas», começava o relatório. «No entanto», continuava-se, «o facto de aquelas tintas reagirem de forma semelhante não significa necessariamente que tenham sido produzidas pelo mesmo instrumento de escrita, já que uma determinada tinta não é exclusiva de um único instrumento, mas sim comum, pelo menos, aos da mesma marca e série de fabrico.»

A análise dos vários envelopes de boletins de voto detectou que muitos deles foram feitos por «instrumento de escrita diferente». Mas nem isso chegou. Apesar da situação ilógica, como se os eleitores anulassem o voto apondo cruzes em vários sítios, os peritos não eram peremptórios.


A 18 de Agosto de 1998, a procuradora Paula Soares arquivou o inquérito.

A verdade era que os votos tinham sido anulados. Tranquila e impunemente.

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